A visão é discutida por Donna Haraway, em Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. No trecho de seu ensaio, a persistência da visão, a autora tenta resgatar uma narrativa sobre a visão como sistema sensorial, identificando criticamente o olhar não marcado de Homem e Branco. A autora declara a visão devoradora como:
Haraway analisa a dimensão catastrófica burilada historicamente em torno do olhar do humano primata e sua crença no deus que olha de lugar nenhum e seus subprodutos guarnecidos em sistemas totalizantes como o capitalismo e a supremacia masculina. A autora busca explicitar sua tese ao citar a edição centenária da revista National Geografic e o agenciamento generativo do olhar pela tecnologia do aparato fotográfico descorporificado. Ela ressalta que ainda nos encontramos no caminho da destruição, da perda e por isso imagina outra possibilidade:
Ver pela visão tecnocrática e masculinizada da ciência trata-se de insistir num limite do campo de atuação dos sujeitos, alienados de suas histórias, saberes e existências, resta a insurgência por uma outra rota, outra visão, enfaticamente a autora questiona:
Faz-se necessário, deste modo, uma ruptura com o paradigma científico que autoriza e desautoriza o olhar, propor saberes locais em contraposição a homogeneização, ao monopólio da visão e das subjetividades. Este mesmo desejo é manifesto na obra de Grada Kilomba, Memórias da plantação, especialmente do capítulo 10 que aborda a segregação e o contágio racial. A ocupação urbana é segregada, a visão é segregada.
Quem pode ver o lado branco da rua? A luva branca como película de segregação, política separatista da cultura do branco que invade a vida do negro, rouba sua música, sua comida, sua terra. Analogia do toque com luvas brancas em mãos negras, película cinematográfica negra de Arthur Jafa: “e se os americanos gostassem dos negros como gostam da cultura negra? Racismo é racismo.” Tanto Kilomba quanto Jafa colocam em pauta a discussão sobre o separatismo racial como um impeditivo existencial aos negros e como vantagem, tranquilidade à supremacia branca, Bairros com cotas para negros, números suportáveis de negros em relação à brancos, dominação cultural pela ordem, ordenamento e vigilância na perspectiva de um projeto de apagamento histórico e manutenção dos privilégios da escravidão.
Kilomba ainda relata nos capítulos seguintes a alucinação branca frente à presença, existência negra, alucinações formadoras de uma identidade nacional norte-americana de cercas brancas revendidas para diversas outras nações, subjetividades delirantes de um país assolado por uma catástrofe racial secularizada. A autora cita:
Percebo em sala de aula a pertinência da fala de Kilomba ao dialogar com estudantes do ensino médio. Na microfísica da sala de aula, ainda na era presencial e hoje na era do distanciamento, corpos, vozes, olhares ainda revestidos de medo, absorvem uma cultura de massa sem se dar conta das alucinações brancas encarnadas em heróis ou discursos salvacionistas. Como a arte pode caminhar entre estes mundos e propor um tensionamento que nos faça pensar sobre tais representações diante da massiva presença de imagens que leem o mundo de forma a abrandar a luta e a apagar o legado da cultura negra?
O apelo visual por uma homogeneização dos corpos e o apaziguamento racial me levam a pensar na possibilidade de uma insurgência em sala de aula, por uma possibilidade de borrar o currículo estagnado e propor um currículo nômade, um currículo-corpo-social feito de pessoas em um território movente, a sala de aula como uma convergência de visões em busca de uma presença no mundo sem pedir licença ao opressor, mesmo falando em sua língua.
Artigos recentes
02/05/2024
Quer ler este artigo?
Apenas R$ 10,00 por mês.
Assine agora e seja membro!
21/01/2024
Assine nosso site e receba
conteúdo exclusivo do site Sonhos entre Pedras.