EDUCAÇÃO

Olhos canibais,

luvas brancas 

Por André Araújo Lima 11/10/2023

A visão é discutida por Donna Haraway, em Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. No trecho de seu ensaio, a persistência da visão, a autora tenta resgatar uma narrativa sobre a visão como sistema sensorial, identificando criticamente o olhar não marcado de Homem e Branco. A autora declara a visão devoradora como: 

Os olhos têm sido usados para significar uma habilidade perversa - esmerilhada à perfeição na história da ciência vinculada ao militarismo, ao capitalismo, ao colonialismo e à supremacia masculina - de distanciar o sujeito cognoscente de todos e de tudo no interesse do poder desmesurado.

Haraway analisa a dimensão catastrófica burilada historicamente em torno do olhar do humano primata e sua crença no deus que olha de lugar nenhum e seus subprodutos guarnecidos em sistemas totalizantes como o capitalismo e a supremacia masculina. A autora busca explicitar sua tese ao citar a edição centenária da revista National Geografic e o agenciamento generativo do olhar pela tecnologia do aparato fotográfico descorporificado. Ela ressalta que ainda nos encontramos no caminho da destruição, da perda e por isso imagina outra possibilidade: 

Quero uma escrita feminista do corpo que enfatize metaforicamente a visão outra vez, porque precisamos resgatar este sentido para encontrar nosso caminho através de todos os truques e poderes visualizadores das ciências e tecnologias modernas que transformaram os debates sobre a objetividade. Precisamos aprender em nossos corpos, dotados das cores e da visão estereoscópica dos primatas, como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e onde não estamos, nas dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos como nomear.

Ver pela visão tecnocrática e masculinizada da ciência trata-se de insistir num limite do campo de atuação dos sujeitos, alienados de suas histórias, saberes e existências, resta a insurgência por uma outra rota, outra visão, enfaticamente a autora questiona: 

As histórias da ciência podem ser eficazmente contadas como histórias das tecnologias. Essas tecnologias são modos de vida, ordens sociais, práticas de visualização. Tecnologias são práticas habilidosas. Como ver? De onde ver? Quais os limites da visão? Ver para quê? Ver com quem? Quem deve ter mais do que um ponto de vista? Nos olhos de quem se joga areia? Quem usa viseiras? Quem interpreta o campo visual? Qual outro poder sensorial desejamos cultivar, além da visão?

Faz-se necessário, deste modo, uma ruptura com o paradigma científico que autoriza e desautoriza o olhar, propor saberes locais em contraposição a homogeneização, ao monopólio da visão e das subjetividades. Este mesmo desejo é manifesto na obra de Grada Kilomba, Memórias da plantação, especialmente do capítulo 10 que aborda a segregação e o contágio racial. A ocupação urbana é segregada, a visão é segregada. 

Quem pode ver o lado branco da rua? A luva branca como película de segregação, política separatista da cultura do branco que invade a vida do negro, rouba sua música, sua comida, sua terra. Analogia do toque com luvas brancas em mãos negras, película cinematográfica negra de Arthur Jafa: “e se os americanos gostassem dos negros como gostam da cultura negra? Racismo é racismo.” Tanto Kilomba quanto Jafa colocam em pauta a discussão sobre o separatismo racial como um impeditivo existencial aos negros e como vantagem, tranquilidade à supremacia branca, Bairros com cotas para negros, números suportáveis de negros em relação à brancos, dominação cultural pela ordem, ordenamento e vigilância na perspectiva de um projeto de apagamento histórico e manutenção dos privilégios da escravidão. 

Kilomba ainda relata nos capítulos seguintes a alucinação branca frente à presença, existência negra, alucinações formadoras de uma identidade nacional norte-americana de cercas brancas revendidas para diversas outras nações, subjetividades delirantes de um país assolado por uma catástrofe racial secularizada. A autora cita:  

Uma pessoa é negra quando se trata da incorporação do que é negativo, mas pode ser igualmente branca quando se trata da incorporação do que é positivo. Que ideias alucinantes habitam a cabeça do sujeito branco que acredita que não somos realmente negros e negras quando somos boas e bons, mas, de fato, negras e negros quando somos maus - que alucinação branca!( KILOMBA, 2012,p.177)

Percebo em sala de aula a pertinência da fala de Kilomba ao dialogar com estudantes do ensino médio. Na microfísica da sala de aula, ainda na era presencial e hoje na era do distanciamento, corpos, vozes, olhares ainda revestidos de medo, absorvem uma cultura de massa sem se dar conta das alucinações brancas encarnadas em heróis ou discursos salvacionistas. Como a arte pode caminhar entre estes mundos e propor um tensionamento que nos faça pensar sobre tais representações diante da massiva presença de imagens que leem o mundo de forma a abrandar a luta e a apagar o legado da cultura negra?

O apelo visual por uma homogeneização dos corpos e o apaziguamento racial me levam a pensar na possibilidade de uma insurgência em sala de aula, por uma possibilidade de borrar o currículo estagnado e propor um currículo nômade, um currículo-corpo-social feito de pessoas em um território movente, a sala de aula como uma convergência de visões em busca de uma presença no mundo sem pedir licença ao opressor, mesmo falando em sua língua.





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