Arte e guerrilhas feministas na (des)escritura dos corpos
No ensaio “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, publicado em 1981, Gloria Anzaldúa me permitiu conhecer e imaginar com sua escrita um panorama dos apagamentos e resistências da imagem da mulher, tanto em sua trajetória como em seu contexto cultural. A ideia era escrever uma carta para mulheres que resistem em algum lugar do tempo. Seu recomeçar a escrita da carta passa pela dificuldade do próprio ato de escrever, é talvez a tentativa de sugerir um novo começo para além da metalinguagem do texto, um novo marco de uma nova ideia de mundo. Imaginar mundos possíveis em meio aos perigos incontornáveis, impossíveis de se apagar. Na mesma época da publicação do texto de Anzaldúa, ocorria o movimento na arte contemporânea em Nova Iorque conhecido como Guerrilla Girls (Garotas guerrilheiras, em tradução livre), com pautas muitos semelhantes ao debate que a autora traz, como podemos verificar na passagem em que Anzaldúa diz, citando Alice Walker:
O homem branco diz:
Talvez se rasparem o moreno
de suas faces. Talvez se
branquearem seus ossos.
Parem de falar em línguas,
parem de escrever com
a mão esquerda. Não cultivem
suas peles coloridas, nem suas
línguas de fogo se quiserem
prosperar em um mundo destro.
“O homem, como os outros
animais, tem medo e é repelido
pelo que ele não entende, e uma
simples diferença é capaz
de conotar algo maligno.
Seguindo essa ideia de contestação, desacordo, desconforto e ruptura, podemos perceber no manifesto do grupo Guerrilla Girls algumas ressonâncias:
“As vantagens de ser uma artista mulher: trabalhar sem pressão do sucesso. Não ter que participar de exposições com homens. Poder escapar do mundo da arte em seus quatro trabalhos como freelancer. Saber que sua carreira pode decolar quando você tiver oitenta anos. Estar segura de que, independentemente do tipo de arte que você faz, será rotulada como feminina. Não ficar presa à segurança de um cargo de professor. Ver as suas ideias tomarem vida no trabalho dos outros. Ter a oportunidade de escolher sua carreira ou a maternidade. Não ter que se engasgar com aqueles charutos enormes nem ter que pintar vestindo ternos italianos. Ter mais tempo para trabalhar quando o seu homem lhe deixar por uma mulher mais nova, ser incluída em versões revistas da história da arte. Não ter que passar pelo constrangimento de ser chamada de gênio. Ver sua foto em revistas de arte usando uma roupa de gorila.”
Percebe-se uma relação análoga entre as reivindicações e pautas, Anzaldúa e o Guerrilla Girls. Entretanto, ambas não são iguais. Pautas, pontos de dissenso e contrastes podem ser identificados. Anzaldúa olha para si, seu tigre, a escrita, como potência visceral contra a barbárie, contra o medo e o apagamento, ela mesma atravessa o tempo com sua escrita diante dos estratos sociais de seu contexto até o nosso tempo. Essa escrita rememora, particularmente outra escritora, Adrienne Rich, uma década antes da publicação de Anzaldúa:
Junto palavras na máquina de escrever, pela noite dentro, pensando no dia de hoje. Tão bem que nós falávamos todos. Uma língua é um mapa dos nossos erros. Frederick Douglass escrevia num inglês mais puro que o de Milton. As pessoas sofrem desesperadamente na pobreza. Existem métodos, mas não os usamos. Joana, que não sabia ler, falava uma forma camponesa de francês. Algum do sofrimento é: é duro dizer a verdade; isto é a América; não posso tocar-te agora. Na América temos só o tempo presente. Estou em perigo. Estás em perigo. O queimar de um livro não desperta em mim qualquer sensação. Sei que queimar dói. Há chamas de napalm em Catonsville, Maryland. Sei que queimar dói. A máquina de escrever está sobreaquecida, a minha boca queima, não te posso tocar agora e esta é a linguagem do opressor. (Adrienne Rich, 1968)
Nestes três exemplos, a linguagem evoca de forma incisiva uma tensão íntima pela busca da liberdade, não apenas expressa socialmente em cada contexto, mas também no uso da própria linguagem, talvez de forma mais explícita no texto de Rich. Ainda hoje percebemos a ressonância da força de tais autoras na arte e na educação. Ainda resta uma pergunta no ar da atmosfera cada vez mais rarefeita desses dias ácidos de século XXI: se a escrita é nossa arma de guerra, então quando o presente deixará nossas linhas menos amargas?
Para citar esta página do site Sonhos entre Pedras como fonte de sua pesquisa, utilize o texto abaixo: LIMA, André Luiz de Araújo. O instinto e a racionalidade na arte, 2023. Disponível em: <Arte e guerrilhas feministas na (des)escritura dos corpos | Sonhos entre Pedras>. Acesso em ....
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