Rasgos no mito da

democracia racial

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Redenção de Cam, do pintor Modesto Brocos, 1895, óleo sobre tela (199 x166cm).

 

Quilombismo, transculturação, eugenia racial e "democracia racial" são algumas das ideias abordadas por Abdias Nascimento, Clóvis Moura e o documentário sobre Beatriz Nascimento, Orí, de Raquel Gerber (1989), tratando da história, formação e efeitos da necropolítica sistematizada contra a população negra. Uma das dimensões estruturantes do racismo presente na história do Brasil é a proposta de branqueamento da população, à semelhança do quadro de Modesto Brocos, a redenção de Cam, exposto pela primeira vez em 1895. De acordo com Moura,

O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil surge exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado. Aí coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e do negro com o branco como trabalhadores. O primeiro representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado, pacífico e progressista. Desta forma, para se modernizar e desenvolver o Brasil só havia um caminho: colocar no lugar do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga passiva, exótica, fetichista e perigosa por uma população cristã, europeia e morigerada. (MOURA, 1988, p. 79).


De fato, a ocorrência da pintura de Brocos é concomitante ao período citato por Moura, onde o escravo negro é descartado por uma força de trabalho que seria o estandarte de uma visão de mundo progressista, restando a população negra submeter-se ao processo de branqueamento. Essa perspectiva se uma supremacia branca também foi fortemente alicerçada por uma ciência eugenista como relata Moura ao citar a importância do cientista Nina Rodrigues em chancelar a figura do negro como inferior aos brancos.

A eugenia racial insularizou ainda mais dramaticamente a população negra brasileira num apartheid social, político e econômico, seus efeitos ainda podem ser sentidos nos dias de hoje nos mais amplos aspectos da sociedade, mas particularmente no campo da arte, esse embate mostra-se numa trajetória de inversão desta perspectiva por alguns artistas e curadores negros que lutam por uma equidade na valorização, exposição e ampliação dos acervos da arte de artistas negros do país.

Exemplo disso é o trabalho da artista Rosana Paulino, que trabalha com os conceitos de eugenia e do racismo biológico em suas obras, a artista se apropria de imagens de mulheres negras, símbolos de um holocausto catastrófico desde os mares atlânticos até o interior das terras do Brasil. Rosana denuncia em sua arte o apagamento secular de uma cultura e um povo arrastado de suas terras, de suas riquezas por uma alucinação branca. Para Moura, o projeto de aniquilação racial funcionava pelas vias da aculturação de modo muito bem orquestrado, planejado de forma a narrar a vitória branca frente ao atraso do negro, segundo o autor, 


Toda a manipulação conceitual objetivava demonstrar como nesse contato cultural os povos dominados sofriam a influência dos dominadores e disto resultaria uma síntese na qual os dominados também transmitiriam parte dos seus padrões à dominadora que os incorporaria à sua estrutura cultural básica. Com isto, os povos aculturados seriam beneficiados. Era como se não houvesse contradições sociais estruturais que dificultassem e/ou impedissem que os padrões culturais de etnias ou povo dominado fossem institucionalizados pela sociedade dominadora. Isto é, que religião, indumentária, culinária, organização familiar deixassem de ser vistas como padrões pertencentes a minorias ou grupos dominados e passassem à posição de padrões dominantes. (MOURA, 1988, p. 45).


Para Abdias Nascimento, esta mesma questão do apagamento histórico presente na obra de Rosana Paulino se configura como um ato de resistência que necessita ser pensado a partir da premissa da manutenção do sistema capitalista e seus desdobramentos de apaziguamento racial. Nas palavras do autor:

Nós, os negros, temos sido forçados a esquecer nossa história e nossa condição por um tempo demasiadamente longo. Por que ficarmos quietos, silenciosos, e perdoarmos ou esquecermos o holocausto de milhões sem conta - cem, duzentos, trezentos milhões? - de africanos (homens, mulheres, crianças) friamente assassinados, torturados, estuprados e raptados por criminosos europeus durante a escravidão e depois dela? Ou será que não devemos clamar nem reclamar, cooperando com os escravocratas de ontem e de hoje, já que para os europeus a escravidão constituiu o "passo necessário" à fundação e desenvolvimento do capitalismo, e sendo este a etapa obrigatória rumo ao "paraíso" socialista? (NASCIMENTO, 1980, p 21).


Nascimento aprofunda sua visão a respeito do racismo como um projeto de genocídio da população negra onde percebemos a ressonância de sua definição na obra (imagens 4 e 5) de Rosana Paulino ao abordar o racismo científico numa perspectiva que incorpora o massacre para revelá-lo no plano de suas imagens ressignificadas com silenciamentos em bocas costuradas, corpos torturados e maltratados pelo delírio da supremacia branca, o negro como cobaia sociológica. Abdias Nascimento define o racismo como: 

 

[...] a crença na inerente superioridade de uma raça sobre outra. Tal superioridade é concebida tanto no aspecto biológico, como na dimensão psico-sociocultural. Esta é a dimensão usualmente negligenciada ou omitida nas definições tradicionais do racismo. A elaboração teórico científica produzida pela cultura branco europeia justificando a escravização e a inferiorização dos povos africanos constitui o exemplo eminente do racismo jamais conhecido na história da humanidade. Racismo é a primeira contradição no caminho do negro. A esta se juntam outras, como a contradição de classes e de sexo. (NASCIMENTO, 1980, p 165).


O deslocamento que a obra de Rosana Paulino nos imprime dialoga com a perspectiva de Clóvis Moura e Abdias Nascimento e nos alerta sobretudo para a continuidade sistêmica dos itinerários fascistas que se delineiam na contemporaneidade no Brasil, a pertinência de sua proposta artística é um rasgo do mito da democracia racial e uma denúncia incontornável e urgente por um quilombismo imanente que aflore as diferenças e subjugue a história da celebração da história do Brasil sem o povo negro.

No vídeo abaixo, a artista fala a respeito de sua obra e a costura poética da memória em torno dos apagamentos da história e do corpo negro no Brasil.

Como citar:

Para citar esta página do site Sonhos entre Pedras como fonte de sua pesquisa, utilize o texto abaixo: LIMA, André Luiz de Araújo. rasgos no mito da democracia racial, 2023. Disponível em: <Rasgos no mito da democracia racial | Sonhos entre Pedras/>. Acesso em ...(insira data).

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André de Araújo Lima

Mestre em Educação e Diversidade,

fotógrafo, artista visual e professor

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