DIÁRIO DAS PROFESSORALIDADES

Este diário é um dos produtos da pesquisa intitulada "O fotográfico e a professoralidade: uma cartografia de aproximações e distanciamentos, de autoria de André Luiz de Araújo Lima, realizada durante o Mestrado Profissional de Educação e Diversidade da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, Campus IV. Cada palavra abre uma pop-up com um trecho do diário, portanto, não comece pelo começo, volte para uma segunda leitura, coisas novas surgirão. Os vazios ora são abandonos da escrita, ora são pausas para pensar e ler coisas novas. Boa leitura!

Pérolas aos porcos

Pérolas aos porcos

“Vamos dar pérolas aos porcos?”

É isso que saiu da boca de uma servidora pública

que tem o dever de prestar serviço à população,

e na ocasião, diretora de escola pública.

O versículo bíblico ressoava entre as paredes da escola,

matando todas as possibilidades daquilo que

Paulo Freire pensava sobre a educação.



Coragem esquecida

A coragem esquecida

Entre coragens esquecidas, tecer um outro modo de ver,

tirar da própria rigidez dos ossos alguma coisa afiada,

como quem afia na própria carne um instrumento.

Afiar vira afinar, vagarosamente como caem os cabelos,

vivamente como mudam as texturas da pele pelo calor das estações.

Velado, o olho dribla o futuro para ser atingido por uma visão,

delírio de superfície potencial, impureza em estado puro,

sem julgamentos ou esperanças.

A coragem é agora um sopro que emerge da superfície,

é suor frio como orvalho que brota da folha,

plano comum dos acontecimentos.

Coragem para pensar, criar dobras,

viver o jogo, viver o outro, virar o jogo.



Ele, o professor

Ele, o professor

Pobre, fez-se professor e, na presença de outros professores,

diz: Sou o melhor da minha turma de graduação,

sou o único que conseguiu estar na pós-graduação

Ele, desmerecendo seus alunos, chama-os de burros,

e que estão pagando a faculdade como mero alívio de suas

posições sociais. Ele, o professor,

professa a sentença derradeira.

Mas, para quem?


Experiência zero

Experiência zero

Nomeio de experiência zero este relato, pois pelo termo

experiência, entendo como o reconhecimento

de uma experiência em seu ato, como um entreolhar que

promove a consciência do ato em si pelo indivíduo, ao mesmo

tempo em que este reconhecimento se torna real por ele mesmo.

Nesse sentido, é importante destacar o papel da escrita de si, ou,

usando o termo foucaultiano, etopoiética, num processo de

escrita onde o escrito reconfigura-se com o plano do presente na

condição em que Umberto Eco coloca como a de uma obra

aberta, escrita como um campo aberto de experiências.

Aquilo que é escrito não se define pelo jogo de palavras, mas em

como estas são manipuladas para provocar conflitos, tensões e

torções em si mesmas no sentido de criar novos sentidos.


Escrever

Escrever

Escrever para transcender a simples decodificação

de sinais linguísticos e a interpretação literal do escrito.

Escrever para sujar de impurezas a língua do poder.

Escrever para transformar.

Escrever para transgredir.

Escrever para desobedecer.

Escrever para delirar.

Escrever com o corpo uma nova língua,

como a lesma, que deixa seu rastro efêmero.

Escrever para infernizar a educação.

Escrever para prejudicar o fascista em mim, em você.

Escrever para bagunçar, para desacatar.

Escrever para quem já foi e para quem vai chegar,

pouco importa quem seja.

Escrever para reaprender a sorrir.

Escrever para os ratos e também para as bactérias,

para os quasares e os raios lunares.

Escrever para uma pedra.

Escrever como uma pedra.

Escrever...


Caminhar

Caminhar

Caminhar, andar muito, mas sem evitar sujar os pés. Afinal, estamos de passagem. Entre composições e decomposições, venho me tornando professor, vacilando e deslizando por entre limiares de uma formação marcada por desfazimentos e refazimentos, pelas sobras e dobras jogadas ao tempo e em poças de lama. Lama de impurezas, aproveitemos a sujeira que querem afastar de nós e toda sua riqueza pedagógica e suas potencialidades curriculares.

O que um lamaçal tem a nos ensinar em seu devir-lama? O que um currículo lamacento e pantanoso tem a nos ensinar para transmutar a educação quando a escola se assemelha a uma prisão, com grades, punições e castigos? É preciso aprender com as brincadeiras sujas das crianças, que não guardam relação pré-existente entre o barro e a mão que o molda. Caminhar, mas a partir de dentro e por dentro das poças de lama, em puro devir, pois estamos de passagem.



Pink

Pink

Menino criado por vó, era como diziam. Atarefado em construir brinquedos improvisados de pedaços de blocos da velha alvenaria apodrecida e esverdeada de musgos que sempre visitava na casa dos avós maternos. Numa dessas pequenas aventuras, tomou os óculos de grau "fundo de garrafa" de sua avó e pôs a enxergar a nova curvatura do chão da sala, um piso vermelho pigmentando o cimento frio da casa bem arejada ainda na década de 80. Piso naquele chão e não consigo alcançar seu contato. Vertigem. Ainda lembro o primeiro encontro que tive com aquela caixa reluzente, muito pesada e que a partir daquela data iria ocupar um lugar de máxima atenção naquele lar. Um grande botão circular garantia que todos pudessem controlar seu volume. Como aquelas cores foram parar lá dentro? A sensação de pôr os olhos colados na tela para ver aqueles quadradinhos brilhantes se movendo era algo mágico.

Parangolé

Parangolé

Onde cabe heresia na escola? Não cabe, é preciso vazar. A

presença da imagem mítica que reúne seres alados, druidas, as

cores da mangueira, um parangolé que borra a figuração dos

corpos, ele próprio agora é corpo, pintura alada, filho de Ícaro,

tramas de Zé do Caixão, Zé Ramalho. Não é a compreensão da

arte que me interessa, é sua misteriosa presença na vida que

arromba nossa invenção da própria vida, sua conservação,

duração.

A lebre morta

Como explicar quadros

para uma lebre morta?

Com um dos títulos mais intrigantes do mundo da arte, Joseph Beuys, um dos mais representativos artistas do século XX, nos lança uma questão desconcertante: afinal, como produzir arte para além das fronteiras estéticas instituídas pela tradição ocidental? E mais: como pensar essa proposta no contexto educacional para além dos modelos tradicionais? Para Beuys, a educação necessita de liberdade e de criação, não a liberdade advinda da razão, mas uma liberdade que emergiria dos grupos escolares, uma liberdade singular, sem distinção entre professores e alunos. O artista alemão nos chama atenção para uma revisão completa do conceito de arte, uma arte capaz de ser revolucionária, questionando o sistema que gira em torno dela. Seu conceito ampliado de arte seria uma espécie de metáfora da experiência humana, onde a revolução aconteceria do interior de cada um. A educação atual é capaz de fugir do tradicional modelo, de fundamento positivista, e ir finalmente em busca da liberdade?

Sol e Aço

Sol e Aço

Às vezes escrever é um exercício

inverso ao trabalho de pôr o barco no mar,

É preciso pôr o mar no barco, junto com quem o veleja.

Procurei dizer sobre o corpo,

mas tudo isso já é inútil, era o que me afligia,

tentar encaixar a língua numa imagem do corpo.

Antes da língua, o palato já pulsa,

faz babar um corpo-escrita, febril e intenso,

que toma de assalto as palavras,

assim como o buraco negro engole a luz.

A superfície desse "eu" pode agora sonhar indomavelmente,

fluir como a "baba" das lesmas, pois está livre do cabresto do limite.



Deuses e shampoos

Deuses e shampoos

Os deuses hoje são como shampoo, cada um tem o seu.

A frase, atribuída a Felipe Pondé, incomodou as

professoras, elas então, tentando negar a palavra, o discurso,

logo disseram: e os alunos que nem shampoo tem em casa?



Não pode errar mais!

Não pode errar mais!

Num desses notórios espaços artísticos e de formação, a Escola de

Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (EBA/UFBA), fui

surpreendido na colação de grau com uma frase de um professor.

Estava eu junto com minha mãe e irmãs, um momento solene, a

direção da instituição sempre escolhia o salão nobre do casarão

tombado da EBA para celebrar a formatura dos novos bacharéis. Era

mês de fevereiro de 2009. Após juramentos e os protocolos

cerimoniais, me dirigi à mesa onde estão os representantes da turma,

estendi meu braço para segurar o “canudo” quando ouvi uma frase

dirigida unicamente para mim em tom confiante:

“daqui para frente, não pode errar mais”. 



Arte para quê?

Sem título, impressão fotográfica sobre papel. 140x90cm. 2011

Arte para quê?

Na escola, é preciso alcançar a dimensão da boniteza, como disse Paulo Freire, do afeto desinteressado, diria que do afeto a qualquer preço, por uma vontade de beleza. A imagem que ilustra esse primeiro traço de relato me meu diário tenta decifrar uma ideia mesmo do que seja começar, como se pudéssemos olhar para aquilo que nos compõe pelo rastro que deixamos, nesse sentido imagino uma aula como o momento definido por um encontro conflituoso que deixa rastros.

Desformatar

André Lima. "Cavalo" 2024. Técnica mista.

Desformatar

Desestruturar as traves que nos calam desde o século XVI nas imagens que evocam um naturalismo incipiente, meramente formal, desarticula a ordem do discurso que ainda tem força e forma na manipulação secular do poder. Minha trajetória passou despercebida muitas vezes por meus olhos, mas aqui estamos escrevendo por muitos outros olhos de ver. Ressignificar as cinzas desse mar de olhares que antes de ser algo estavam embalsamados em meras quimeras de um jovem sonhador.

Florilégio

Sobras de quintal. 2013

Florilégio

Resisti em escrever sobre essa aula. Não sei o porquê mas talvez descubra escrevendo. Será que tudo aquilo experienciado neste dia, nesta aula, ainda está em suspenso e não submerso? Ainda me percebo naquela aula. Pode ser isso. Mas acho inútil rememorar a aula, sinto-me impelido a criar elucubrações sobre o eco que ainda ressoa daquelas vozes e pensamentos. Isso não é um diário. É um título de um livro do Bauman que ainda não li. É a força do ritual ainda pulsando, tremendo a carne, bruxaria, antologia de desejos alquímicos, florilégio é mais belo na pronúncia da boca. Comer palavras, antropofagias desejantes.

Aprender?

André Lima, "Um Dia para Corrida 2". Impressão fotográfica, 70x45cm. 2011.

Aprender?

A aula questiona e provoca o deslocamento sobre como o outro aprende. Como o outro aprende? Como sabemos que o outro aprende? Será que a racionalidade instrumental consegue dar conta da complexidade do ato de aprender? Como instaurar a aprendizagem sensível? Aprendemos quando? Aprendemos quando o outro quer? Penso que a dificuldade está ligada a forma como interpretamos o outro, particularmente os alunos, esse sujeito tradicionalmente e epistemologicamente esvaziado partindo do princípio de que há um ouvinte, um espaço vazio a ser preenchido e uma metodologia que pretensamente funcionará de modo genérico para um público diverso que não irá divergir dos métodos impostos. Aprender nesse sentido talvez enalteça uma ideia de instauração das diferenças, pois é na diferença que se pode propor o impulso por novas estruturas de diálogo, por vezes contraditórios, mas assim mesmo necessários para uma educação emancipatória.


So[m]bras

The point of using dummy text for your paragraph is that it has a more-

Caminhar

Caminhar, andar muito, mas sem evitar sujar os pés. Afinal, estamos de passagem. Entre composições e decomposições, venho me tornando professor, vacilando e deslizando por entre limiares de uma formação marcada por desfazimentos e refazimentos, pelas sobras e dobras jogadas ao tempo e em poças de lama. Lama de impurezas, aproveitemos a sujeira que querem afastar de nós e toda sua riqueza pedagógica e suas potencialidades curriculares.

O que um lamaçal tem a nos ensinar em seu devir-lama? O que um currículo lamacento e pantanoso tem a nos ensinar para transmutar a educação quando a escola se assemelha a uma prisão, com grades, punições e castigos? É preciso aprender com as brincadeiras sujas das crianças, que não guardam relação pré-existente entre o barro e a mão que o molda. Caminhar, mas a partir de dentro e por dentro das poças de lama, em puro devir, pois estamos de passagem.



[Des]foco

[Des]foco

O foco que ora me [des]foca atualmente é aquilo que antes permanecia opaco - um sujeito compacto, separado de si mesmo, subjugado pela história. Surge agora, em um distanciamento necessário, uma percepção aguçada da distância que ainda poderia existir, instigando a produção de uma vida mais plena. Aqui, torna-se evidente a emergência de um sujeito-em-obra, conforme Rolnik (2020), uma figura que se desenha como um duplo desfoque pela experiência. Este desfoque visa turvar não apenas a noção de unidade e identidade, mas também a concepção tradicional do Eu. Essa transformação não ocorre de maneira linear, mas sim através de um processo dinâmico e intenso, caótico e em grande medida, não parametrizável.

H.O.

Foto divulgação do álbum de Zé Ramalho em companhia de Hélio Oiticica, 1974

H.O.

Redescubro a figura de Hélio Oiticica pela terceira vez na vida, a segunda, na Escola de Belas Artes, a terceira, nas aulas de docência e diversidade do mestrado profissional na UNEB.  Percebo a presença da obra do artista em minha vida, não, não a obra, a poética, a marginalidade e o heroísmo: seja herói, seja marginal. Onde cabe essa heresia na escola? Não cabe, é preciso vazar. A presença da imagem mítica, mística fotografia que reúne seres alados, druidas, as cores da mangueira na calça do Hélio, um parangolé que borra a figuração dos corpos, ele próprio agora é corpo, pintura alada, filho de Ícaro, tramas de Zé do Caixão, Zé Ramalho. Não é a compreensão da arte que me interessa, é sua misteriosa presença na vida que arromba nossa invenção da própria vida, sua conservação, duração.

Cintilante

Cintilante

Vejo-me novamente diante do pálido brilho que envolve a vertigem cintilante da TV, sob o silêncio, quando todas as vozes gritam, o que se pode ouvir? Afinal, o que estava diante de mim? Quanto mais adaptado e localizado diante da aura hedonista da TV, mais incapaz seria de experimentar os acontecimentos a partir da realidade material e psíquica? O que este muro de blocos brilhantes guarda em semelhança ao muro da escola?

[De]composição

[De]composição

Explorando uma distância reflexiva durante a meditação sobre a representação do fogo, inspirado nas ideias de Bachelard (1988), este exercício epistemológico busca compreender o imaginário associado a esse elemento nas imagens visuais que desafiam minha prática docente, ao mesmo tempo em que me afasto de qualquer construção identitária que conduza a um pensamento puramente imagético. Procuro delinear uma abordagem centrada em algumas representações artísticas, notadamente na obra da artista cubana Ana Mendieta (1948-1985), cuja silhueta em chamas serve como ponto de ignição para contemplar a forja deste professor e a prática docente em artes no âmbito da Educação Básica.

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